terça-feira, 22 de maio de 2012

O Berçário

O Berçário
Num berçário das maternidades da civilização ocidental há muito poucas possibilidades de receber consolo de uma mãe loba. O recém-nascido, cuja pele está pedindo a gritos voltar a sentir aquela carne suave, cálida e viva com a qual estava em contato, é envolvido num tecido seco e inerte. É colocado numa caixa e deixado aí, por mais que chore, num limbo onde não há o menor movimento (pela primeira vez em toda a experiência do seu corpo, na eternidade vivida no útero).

Os únicos sons que pode ouvir são os gemidos de outras vítimas que estão sofrendo o mesmo tormento indescritível. Pode ser que os sons não signifiquem nada para ele. O bebê não pára de chorar, seus pulmões, que não estão acostumados ao ar, ficam exaustos com o desespero que há no seu coração. Ninguém vem ao seu auxílio. Confiando na perfeição da vida, como a sua natureza o impele fazer, faz a única coisa que pode fazer, que é chorar. Até que, após um tempo que para ele é uma eternidade, adormece exausto.

Mais tarde acorda no vago terror que lhe produz o silêncio, a imobilidade. Começa a chorar. Todo o seu corpo, desde a cabeça até a ponta dos pés, está embargado por um anseio ardente, por uma intolerável impaciência. Respira com dificuldade e grita até sentir que sua palpitante cabeça está a ponto de explodir. Chora até que seu peito e sua garganta doam. Já não pode mais suportar a dor e seus soluços vão se apagando até se acalmar. Agora começa a escutar. Abre suas mãos e volta a fechá-las. Mexe a cabeça de um lado ao outro. Nada parece ajudá-lo. O sofrimento é insuportável. Começa a chorar de novo, mas é um esforço excessivo para a sua garganta dolorida e em pouco tempo se cala de novo. Tensiona seu corpo atormentado e ansioso e sente um pouco de consolo. Agita as mãozinhas e chutes no ar. Para, sofrendo, incapaz de pensar ou de ter esperanças. Fica escutando. De novo, acaba adormecendo.
Ao acordar, faz xixi na fralda e o acontecimento lhe distrai do seu tormento. Mas, o agradável ato de urinar e a sensação quente e úmida que sente na parte inferior do seu corpo desaparecem rapidamente. O calor torna-se frio e pegajoso. O bebê dá chutes, tensiona o corpinho e chora sem parar. Desesperado devido ao intenso desejo de contato que inunda, rodeado de um entorno inerte, úmido e incômodo, expressa chorando desconsoladamente sua infelicidade até que tranquiliza com o seu sono solitário.

De repente, alguém o acorda. Volta a acreditar que vai conseguir aquilo que tanto deseja. Tiram sua fralda. Sente-se aliviado. Umas mãos vivas lhe tocam a pele. Levantando seus pés, envolvem-no com outra fralda seca e sem vida. Em pouco tempo é como se as mãos e a fralda úmida nunca houvessem existido. Não há nenhuma lembrança consciente, nenhum sinal de esperança. Encontra-se em meio de um vazio insuportável, eterno, imóvil e silencioso, cheio de um intenso desejo vital de contato. Seu continuum tenta utilizar as medidas de emergência que dispõe, mas todas estão programadas para unir os breves espaços de tempo nos quais permanecerá sem receber um trato adequado ou para pedir consolo a alguém (que se imagina) que queira dar-lhe. Seu continuum não tem nenhuma solução para uma situação tão extrema. Esta supera sua pouca experiência. A natureza do bebê, mesmo que com poucas horas de existência, chegou a um ponto de desorientação que a situação supera a força salvadora do seu poderoso continuum.
A experiência vivida no útero foi a que provavelmente mais se aproximava do estado de bem-estar que, de acordo a suas expectativas inatas, tería que experimentar durante toda sua vida. Sua natureza baseia-se na suposição de que sua mãe está se comportando corretamente e que de todas as motivações que a impulsam e as ações conseguintes se beneficiarão sem dúvida umas às outras.

Alguém chega e o levanta deliciosamente em meio ao ar. Volta à vida. Levam-no de uma maneira excessivamente delicada para seu gosto, mas pelo menos experimenta algum movimento. Depois encontra-se em seu lugar. Todo o sofrimento que padeceu agora já não existe. Descansa em uns braços que o envolvem e apesar de que sua pele ao entrar em contato com a roupa da mãe não lhe envia nenhuma mensagem de encontrar consolo nem sinta o contato da pele viva, suas mãos e sua boca lhe comunicam que se sente bem. O prazer positivo que lhe produz a vida, o estado normal para o continuum é quase completo. O sabor e a textura do peito materno estão presentes, o leite cálido flui para sua boca faminta, ouve a batida de um coração que deveria ter sido todo o seu vínculo, o som que lhe confirma a continuidade da existência vivida no útero; as formas mexendo-se anunciam com claridade que existe vida. O som da voz também é correto. Só existe algo que falta na roupa e é o cheiro inalado (a mãe pôs perfume). O bebê suga o leite e quando está saciado e com as bochechas rosadas, cai adormecido.

Ao acordar, encontra-se num inferno. Não tem nenhuma lembrança, esperança nem pensamento da visita que lhe fez sua mãe que possa tranquilizá-lo nesse inóspito purgatório. As horas, os dias e noites vão passando. O bebê chora até ficar exausto e adormecido. Acorda e faz pipi na fralda. Agora esse ato já não é mais agradável. O prazer efêmero que produzem seus órgãos aliviados torna-se uma dor cada vez mais aguda quando a urina quente e ácida entrem em contato com sua pele irritada. Começa a chorar. Seus pulmões cansados necessitam gritar para não sentir a assadura dolorosa. Chora até que a dor e o pranto o esgotam até cair dormido.

Neste hospital, como é muito normal, as enfermeiras ocupadas trocam as fraldas dos recém-nascidos em horas determinadas, tanto se estão secos quanto se faz pouco ou muito que estão sujos e mandam os bebês às suas casas totalmente escaldados para que lhes cuidem alguém que tenha tempo para isso.

O bebê, quando é levado ao lar de sua mãe (sem dúvida não se pode dizer que seja o lar do bebê), já conhece a fundo como é a vida. A um nível inconsciente que determinará todas suas impressões posteriores, da mesma maneira que as determina agora, sabe que a vida é insuportavelmente solitária, que não responde aos seus sinais e que está cheia de sofrimento.

Mas ele ainda não se rendeu. Sua força vital tentará sempre recuperar o equilíbrio enquanto exista vida nele.

O lar no qual se encontra só é diferente do berçário da maternidade porque agora não tem a pele irritada. Durante as horas em que o bebê está acordado, está ansioso de contato físico e espera de maneira interminável que o vazio silencioso seja substituído pela situação correta.

Durante alguns minutos ao dia, o seu desejo intenso cessa momentaneamente e a terrível necessidade da sua pele ser tocada, sustentada e movida é satisfeita. Sua mãe é a pessoa que, depois de pensar muito, decidiu dar o peito. Ela o ama com uma ternura que nunca antes tinha sentido. A princípio, para ela é difícil deixá-lo num berço depois de amamentar, principalmente porque ele chora desconsoladamente. Mas está convencida de que deve fazê-lo, já que sua mãe lhe disse (e ela deveria saber) que se o pega no colo agora vai deixá-lo mal-acostumado e mais tarde seu filho lhe causará problemas. Ela deseja fazer tudo da melhor maneira possível, por uns momentos sente que a pequena vida que sustenta nos seus braços é mais importante que qualquer outra coisa no mundo.

Suspira e deixa suavemente seu filho no berço, decorado com patinhos amarelos que combinam com o quarto. Ela esmerou-se em decorá-lo com cortinas suaves e sedosas, um tapete em forma de um enorme urso panda, um trocador branco, uma banheira e um toucador equipados com talco, óleo, sabonete, shampoo e escova, tudo fabricado e embalado com cores especiais para bebês. A parede está decorada com imagens de filhotes de animais vestidos como gente. As gavetas da cômoda estão cheios de camisetinhas, macacões, pantufas, gorrinhos, bodies e fraldas. Sobre a cômoda, colocados de lado num ângulo cativante, estão um carneirinho de pelúcia e um vaso com flores recém-cortadas, já que a mamãe “também” adora flores.

Ela estica sua camisetinha e o envolve num lençol bordado e um cueiro decorado com as iniciais do bebê. A mãe o comtempla cheia de satisfação. Ela e seu marido não economizaram para decorar o quarto de seu bebê à perfeição, mesmo sem ter podido comprar todos os móveis para o resto da casa. Ela se inclina para beijar-lhe a bochecha e se dirige à porta enquanto o primeiro e agonizante grito faz estremecer o corpo do bebê.

Fecha a porta com suavidade. Foi declarada a guerra. Sua vontade deve impor-se à do seu filho. Através da porta ouve um som parecido a alguém que está sendo torturado. O sentido do seu continuum o reconhece como tal. A natureza não envia sinais claros de que alguém está sendo torturado a não ser que este seja o caso. A tortura é precisamente tão séria quanto parece.

A mãe duvida, seu coração deseja voltar ao seu filho, mas ela resiste e se afasta. Acaba de trocar e alimentar o seu filho. Como está certa de que ele não precisa realmente de nada, deixa-o chorar até que o pequeno durma exausto.

Ele acorda e volta a chorar. Sua mãe entreabre a porta para assegurar-se de que o pequeno está bem. Depois volta a fechá-la com suavidade para que seu filho não pense que vai receber a atenção que está pedindo e volta com pressa à cozinha para terminar o que estava fazendo, deixando a porta aberta para poder ouvir seu filho se acaso “acontecesse alguma coisa”.

O pranto do bebê vai se transformando em gemidos. Ao não receber nenhuma resposta, a força do seu sinal se perde na confusão de um vazio estéril ao qual o consolo deveria ter chegado faz muito tempo. O bebê olha ao seu redor. Além das barras do berço há uma parede. A luz é tênue. Ele não pode girar seu corpo. Só vê as barras imóveis e a parede. Ouve os sons sem sentido de um mundo distante. Perto não há nenhum som. Comtempla a parede até que os olhos se fecham e volta abri-los. As barras e a parede continuam exatamente no mesmo lugar que antes com a única diferença de que agora a luz é mais tênue.

Entre a eternidade que passa contemplando as barras e a parede, passa outra eternidade contemplando o teto. Ao longe, de um lado, vê umas formas estáticas que sempre estão lá.

Há momentos em que sente algum movimento e algo cobrindo seus ouvidos, um som apagado e um monte de roupa sobre ele. Quando isso acontece, ele pode ver do interior a esquina branca de plástico do carrinho e, de vez em quando, grandes blocos de casas deslizando-se ao longe. Vê também as copas das árvores distantes que também não tem nada a ver com ele. E às vezes pessoas olhando para ele e conversando entre si ou às vezes com ele.

Com mais frequência, essas pessoas agitam um objeto que faz barulho na frente dele e o bebê sente, ao estar tão perto, que está perto da vida e estica a mão e agita os braços desejando encontrar o seu lugar. Quando lhe dão o chocalho nas mãos, ele o pega e o mete na boca. Mas não recebe a sensação que estava esperando. Sacode os braços e o chocalho sai voando. Alguém lhe entrega o chocalho de novo. Como quer que essa pessoa volte, passa a jogar o chocalho e qualquer outro objeto que lhe deem nas mãos enquanto o truque funcione. Quando já não lhe devolvem mais, dedica-se a olhar o céu vazio e a capota do carrinho.

Quando chora no seu carrinho, muitas vezes é recompensado com sinais de vida. Sua mãe mexe o carrinho porque aprendeu que isso o faz ficar quieto. Seu intenso desejo de movimento e experiências, tudo aquilo que seus antepassados tiveram nos seus primeiros meses de vida, acalma-se um pouco quando sua mãe mexe o carrinho, algo que de uma maneira muito pobre oferece-lhe ao menos alguma experiência.

Como não associa as vozes que escuta ao seu redor com nada do que acontece com ele, elas tem muito pouco valor porque não anunciam que vão saciar suas expectativas. No entanto, são mais gratificantes que o silêncio que reinava na maternidade. O consciente da experiência do seu continuum está quase a zero, sua principal experiência real é a do desejo.

Sua mãe o pesa com regularidade e sente-se orgulhosa do progresso do seu filho. As únicas experiências úteis são os poucos minutos ao dia que lhe permitem estar nos braços e algumas outras vividas de maneira irregular que lhe servem para suas outras necessidades e que vão se agregando ao seu tempo permitido.

Os objetos que lhe poem ao alcance servem para imitar aquilo que está faltando. A tradição dita que os brinquedos consolam os bebês que estão sofrendo, mas de algum modo o fazem sem reconhecer o sofrimento dos mesmos.

Em primeiro lugar, está o ursinho ou qualquer outro boneco suave que serve “para dormir”. Está concebido para dar ao bebê a sensação de um constante companheiro. O intenso carinho que às vezes uma criança acaba sentindo por ele é considerado um encantador capricho infantil em vez de ser a manifestação de uma grave carência afetiva que o levou a apegar-se a um objeto inanimado na sua necessidade de encontrar um companheiro que não lhe abandone. Os carrinhos com brinquedos que fazem barulho e os berços que balançam também são outra triste imitação. Mas o movimento enquanto sua mãe o transporta substitui de uma maneira tão pobre e tosca, que pouco satisfaz o desejo do solitário bebê. Além de ser inadqeuado, costuma também ser de frequência irregular. Também existem os brinquedos que se penduram nos berços e fazem som quando o bebê os toca. Os móbiles atraem sua atenção, mas só tocam de vez em quando e não chegam a saciar a necessidade que o bebê tem para o seu desenvolvimento de desfrutar de uma experiência visual e auditiva variada [...]

Tradução de Bel Kock-Allaman

Fonte: Red canguro

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